terça-feira, 15 de julho de 2008

Como um parasita torna os glóbulos vermelhos pegajosos

-
As células infectadas pela malária parecem bolinhas de velcro. A máquina do parasita começou a ser desvendada
-
A malária é a mais mortal de todas as doenças parasitárias que afligem os seres humanos. Para não a apanharmos quando visitamos um país onde ela é endémica, tomamos quinino e tentamos evitar as picadas de mosquitos com redes e insecticidas. Porque é de facto um mosquito, o Anopheles, que é responsável pela transmissão entre seres humanos do parasita da malária, o Plasmodium falciparum. Este microscópico bichinho entra no organismo do mosquito a bordo dos glóbulos vermelhos quando o insecto se alimenta do sangue de uma pessoa infectada, reproduz-se na sua barriga e, quando o mosquito pica uma pessoa não infectada, passa para o organismo desse novo hóspede. Rapidamente infecta o fígado, onde se multiplica e, passadas umas semanas, é libertado no sangue. Aí, aloja-se novamente nos glóbulos vermelhos do sangue, onde continua a multiplicar-se. E assim sucessivamente. Embora existam vários parasitas do mesmo tipo que infectam os humanos, o P. falciparum é de longe o mais comum, sendo responsável por cerca de 80 por cento dos casos e 90 por cento das quase três milhões de mortes anuais, principalmente de crianças, que a malária causa nas regiões tropicais húmidas do globo.
-
Um dos aspectos principais da virulência de P. falciparum é que ele consegue operar uma remodelação radical dos glóbulos vermelhos. Antes de mais, torna-os mais rígidos, dificultando a circulação sanguínea. Mas não se fica por aí: uma vez dentro destas células, fabrica umas moléculas pegajosas que fazem com que os glóbulos vermelhos adiram à parede interna dos vasos sanguíneos, como se fossem autênticas bolinhas de velcro. Este fenómeno é responsável por uma série de graves complicações associadas à malária, como tromboses e hemorragias - e talvez ainda pela forma cerebral da doença, que pode ser mortal em poucos dias, se não for tratada.
-
A aderência dos glóbulos vermelhos à parede dos vasos confere também ao parasita a capacidade de fugir às defesas imunitárias do organismo, uma vez que os glóbulos vermelhos infectados não chegam a ser evacuados para o baço, onde seriam eliminados juntamente com o parasita.
-
Como é que P. falciparum consegue essa façanha? Uma equipa de cientistas, liderada por Alan Cowman, do Instituto de Investigação Médica Walter e Eliza Hall de Melbourne, na Austrália, conseguiu agora começar a desvendar os pormenores do processo - e descobriu que era muito mais complexo do que se pensava até aqui.
-
Mas, longe de desalentar os especialistas, a descoberta é considerada uma esperança, pois abre a porta a um mundo de possibilidades a quem tenta encontrar formas eficazes de travar os estragos da malária.Desligando os genes um a um .Já se sabia que, uma vez dentro dos glóbulos vermelhos, o P. falciparum fabrica uma proteína com propriedades adesivas chamada PfEMP1, que migra para a membrana das células e que fica com uma extremidade de fora, como um espinho. É ela que se irá fisicamente espetar na parede dos vasos sanguíneos.
-
Por sua vez, essa proteína-espinho permanece solidamente presa à membrana dos glóbulos vermelhos graças a protuberâncias (em inglês, knobs) igualmente pegajosas e também cortesia do parasita, formadas por uma outra proteína, chamada KAHRP. Sem esses knobs, os picos de PfEMP1 não resistiriam à força do fluxo sanguíneo e as células infectadas seriam rapidamente varridas do seu esconderijo.
-
Porém, pouco se sabia até aqui sobre o que o parasita fazia para assegurar o transporte das moléculas de proteína PfEMP1 até à membrana dos glóbulos vermelhos infectados, ou sobre a forma como se orquestrava a montagem correcta dos knobs dentro da estrutura dessa membrana. Foi isso que os cientistas australianos quiseram determinar.Começaram por compilar uma lista de 83 genes do parasita suspeitos de terem algum papel no processo. A seguir, desenvolveram 83 estirpes mutantes de P. falciparum, cada uma com um desses genes "a menos" - ou seja, onde um desses genes tinha sido selectivamente desactivado, levando à ausência da proteína correspondente.
-
"Foram cinco anos de trabalho com muita gente envolvida", disse ao PÚBLICO Maria Mota, especialista de malária do Instituto de Medicina Molecular de Lisboa, em conversa telefónica, que acha que os resultados agora publicados na revista Cell são "uma peça fundamental na investigação da malária"."Até agora", explicou Maria Mota, "pensava-se que um conjunto de genes muito parecidos entre si assegurava o processo. Mas no fundo é algo de extremamente complexo, há um conjunto enorme de moléculas envolvido. É uma máquina de tipo industrial, com muitos componentes." A equipa internacional que assina a descoberta introduziu cada uma das estirpes de parasitas mutantes em culturas de glóbulos vermelhos humanos e esse rastreio in vitro saldou-se pela identificação de oito proteínas que são indispensáveis para o transporte das moléculas de PfEMP1 até à membrana dos glóbulos vermelhos e à montagem das protuberâncias.
-
Os cientistas também descobriram uma série de proteínas que contribuem para aumentar a rigidez dos glóbulos vermelhos. "Esta descoberta vai dar um empurrão à investigação", salienta Maria Mota, "porque abre imensas portas."É possível estimar quando é que um medicamento com base na descoberta poderá surgir no mercado? "É difícil dizer", responde-nos a cientista.
-
"Por enquanto, trata-se de um conhecimento muito básico. O trabalho foi realizado em eritrócitos [glóbulos vermelhos] humanos em cultura. Agora vai ser preciso passar ao modelo animal, em roedores. Depois, tudo dependerá do interesse dos laboratórios farmacêuticos." Uma coisa parece certa, porém: a estratégia de luta contra a doença que poderá advir dos resultados agora obtidos será inédita no campo da malária. "Vai ser preciso desenvolver drogas contra vários alvos ao mesmo tempo", diz Maria Mota. "As terapias contra o HIV vieram mostrar-nos a importância disso." As futuras eventuais terapias também não serão destinadas a erradicar totalmente o parasita, mas a mantê-lo sob controlo.
-
Hoje erradica-se o P. falciparum tomando medicamentos como a cloroquina. Mas quando o tratamento é interrompido, se a pessoa for novamente exposta ao parasita, não tem qualquer defesa contra ele. O que se pretende agora é que a pessoa continue infectada, mas livre da doença, salienta Maria Mota. "Não se trata de matar o parasita, mas de desenvolver imunidade contra ele." Alan Cowman: "Talvez haja maneira de inibir esses processos com medicamentos ou com uma vacina viva." (Público)
-

Sem comentários: